para o Luís Gomes
Sim, regressamos sempre
à perfídia do real
- chamemos-lhe assim,
agora que ninguém
(muito menos os taxistas)
recorda ou utiliza
o nome legítimo deste largo.
Comecei pela taberna,
à esquerda de quem
sobe devagar
as Escadinhas do Dique.
Anos mais tarde, a pensão
Estrela de Ouro ensinou-me
que o amor e o sexo
são exactamente a mesma morte:
litania de cerveja, sem preservativo.
De um lado e de outro,
os alfarrabistas. Príncipes do pó
- e senhores, por vezes,
da lenta medida dos gestos,
do peso único de cada verso.
Quando entardece, em Lisboa,
já sem eléctricos, já sem
Ruy Cinatti, já sem tanta coisa.
A gata recolhe-se - mortal,
feliz de o não saber. Deita-se
no sofá e concorda ou não
concorda com a ornitologia
sacra de Messiaen. Talvez
até prefira Hemingway,
cansados livros de bolso,
a qualquer primeira edição de Herberto.
Assina, junto de quem entra,
um nome impronunciavelmente belo.
*
Os candeeiros acendem-se,
menos rodeados
de pombas e de arrumadores.
O último cliente, por hoje,
queria um livro sobre os fundamentos
éticos da política norte-americana
e entrava, sem saber, num poema
inédito de José Miguel Silva.
Lá fora o mundo, a inapagável distância.
Sabe-o, melhor que nós,
a gata, entre livros e livros
que terá a sorte de não ler.
Aproxima-se, não tem pressa,
vem recordar-nos que estamos
vivos - menos felizes, mas vivos -
à mercê de um verso, da sombra
pálida dos livros, da música
contrária à evidência de haver mundo.
Este navio vai partir agora.
Não navega, não cavalga, não tem espelhos.
Página a página nos matamos
- portugueses, suaves, tão concretos.
Manuel de Freitas, Blues for Mary Jane,
Lisboa: &etc, 2004
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