segunda-feira, 16 de março de 2015

LARGO DA MISERICÓRDIA


para o Luís Gomes


Sim, regressamos sempre
à perfídia do real
- chamemos-lhe assim, 
agora que ninguém
(muito menos os taxistas)
recorda ou utiliza 
o nome legítimo deste largo. 

Comecei pela taberna,
à esquerda de quem
sobe devagar
as Escadinhas do Dique.
Anos mais tarde, a pensão
Estrela de Ouro ensinou-me 
que o amor e o sexo
são exactamente a mesma morte:
litania de cerveja, sem preservativo. 

De um lado e de outro,
os alfarrabistas. Príncipes do pó
- e senhores, por vezes,
da lenta medida dos gestos,
do peso único de cada verso.
Quando entardece, em Lisboa, 
já sem eléctricos, já sem
Ruy Cinatti, já sem tanta coisa.

A gata recolhe-se - mortal,
feliz de o não saber. Deita-se
no sofá e concorda ou não
concorda com a ornitologia 
sacra de Messiaen. Talvez 
até prefira Hemingway,
cansados livros de bolso,
a qualquer primeira edição de Herberto.
Assina, junto de quem entra, 
um nome impronunciavelmente belo. 


*


Os candeeiros acendem-se,
menos rodeados
de pombas e de arrumadores.
O último cliente, por hoje,
queria um livro sobre os fundamentos
éticos da política norte-americana
e entrava, sem saber, num poema
inédito de José Miguel Silva.
Lá fora o mundo, a inapagável distância.

Sabe-o, melhor que nós, 
a gata, entre livros e livros
que terá a sorte de não ler. 
Aproxima-se, não tem pressa,
vem recordar-nos que estamos
vivos - menos felizes, mas vivos - 
à mercê de um verso, da sombra
pálida dos livros, da música
contrária à evidência de haver mundo. 

Este navio vai partir agora. 
Não navega, não cavalga, não tem espelhos. 
Página a página nos matamos
- portugueses, suaves, tão concretos. 


Manuel de Freitas, Blues for Mary Jane,
Lisboa: &etc, 2004

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