quinta-feira, 17 de novembro de 2016

(Po)ética

[...]
Vivi, pois, durante uma época, ainda que muito brevemente, numa casa cujas janelas me inclinavam para as traseiras de um poeta: Raul de Carvalho. Cantava; ouvia-se-lo cantarolar sobre quintais e saguões, à luz de ouro no Outono lisboeta. E ia pondo a sua roupa lavada no estendal, na alegria doce de quem vive, não sozinho: na companhia de versos em louvor dos nadas do dia-a-dia. E o seu vidro saía cortado à medida da sua casa. Algo de que nunca eu me cansei, repetindo, repetindo, repetindo iguais gestos, decerto, na minha própria construção. Ler, não chega; há que ver e ouvir pela abertura do coração, comovidamente.
[...]


Paulo da Costa Domingos, Narrativa,
com carta-prefácio e capa de Vitor Silva Tavares, 
Lisboa, Alambique, 26 de Maio de 2016 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

"Se há uma voz que canta a nossa vida, como calá-la? Como admiti-la sem rosto, sem pele, entregue sem retorno ao rumor das águas? Como confiná-la para sempre ao rodar frio de um disco, à mortalha de uma estante?
[...]"

Renata Correia Botelho, "Nota",
small song, 2.ª ed. rev.,
Lisboa, Alambique, 2015




[Fotografia: Leonard Cohen by David Boswell, 1970]

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

SIRENE

A vela apagou-se depois de romper a primeira luz. Havia muito tempo, por trás de uma cortina de pedra, tão fina e negra, sacudida como cabelos negros, como cabelos partindo-se na água. Porque ao fundo de tudo era o mar, patas presas na baba de aranha, ainda agora branca se a luz desce ao parapeito. Esperava muito, adormecia: enquanto o viço venenoso das urtigas ardia no saguão.
Contem as horas e não me acordem antes de um homem saudar na rua o regresso da chuva. Tão longe dos que invadiram as salas de espera, o patamar e dois lances de escada, com chapéus de feltro e fatos de pantera, os anéis intactos por entre o fumo dos cigarros. No corredor, um deus, um anjo vago, apenas um homem, um demónio. Alguém que escapava nas escadas de incêndio, sob o sorriso vermelho das mulheres mortas. 


LUIS MANUEL GASPAR
in Marto R. e Luis Manuel Gaspar, A Sombra do Farol
Lisboa, edição dos autores, 1996

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Pela manhã o gato estende-se
vagaroso nesse impreciso lugar
em que luz e sombra
se entretecem. Nas pedras
rondantes do que sempre chamámos
a nossa casa, esse sonho
de irmos por detrás das janelas
encarcerados nas agrestes
paredes do amor.

Todas as manhãs, enquanto
a escola me espera, o
gato é tão certo como os passos
que dele se desviam. Um mero
olhar, a melancolia
de depois te dizer já sem o mesmo encanto
a sua negra quietude, o silêncio
em que se move.

Estamos todos, eu tu e o gato,
neste estranho sossego
de a morte ser um dia destes,
entre luz e sombra.


Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também,
Porto: Campo das Letras, 2000



[Inês Dias, Outubro de 2010]

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Não te lembres de mim, ao nevoeiro
que encerra os barcos negros no abrigo,
para que o olhar da gárgula arguta
roube às goteiras um golo de luz.

Mas a vida secou. A árvore de ouro
de que viste a sombra ferida no muro,
na parede da casa à meia-noite,
de súbito enlaçada ao candeeiro,

morreu. E tu partiste sob a chuva
de outro mundo, sem saberes que fazer
da carruagem com olhos de lobo,

da porta onde o teu corpo se gravou.
Voltarás ao caminho devorado,
das trevas iludido o céu diurno.


LUIS MANUEL GASPAR
in A Sombra do Farol (1995)



quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Feira do Livro do Porto




A Alambique estará presente na Feira do Livro do Porto,
uma vez mais representada pela Livraria Utopia
(pavilhões 51, 52 e 53).

terça-feira, 21 de junho de 2016

#10



Paulo da Costa Domingos, Narrativa,
com carta-prefácio e capa de Vitor Silva Tavares,
Lisboa, Alambique, 26 de Maio de 2016

segunda-feira, 6 de junho de 2016

ODE À NOITE (INTEIRA)


Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
- ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
- como eu - insónia, pesadelo, golpe baixo).

Existem, claro, raparigas louras um tanto
heteredoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita - o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.

Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
- ou o seu contrário, pois só ali (anónimo
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.


Manuel de Freitas
in Sunny Bar, com org. de Rui Pires Cabral,
posfácio de Silvina Rodrigues Lopes, capa de Luís Henriques
e arranjo gráfico de Pedro Santos, Lisboa, Alambique, 2015

sábado, 4 de junho de 2016


Em carne viva
florescia
o amor, alma

enfeitada
para o correr
do sangue. Os dias
iluminavam o chão

e não sabiam.


José Carlos Soares, ,
Lisboa: Alambique, 2015




[Inês Dias, Sintra, 06/015]


terça-feira, 31 de maio de 2016

FEIRA DO LIVRO DE LISBOA - 2016


Todos os livros da AVERNO e da ALAMBIQUE
estão disponíveis no pavilhão D20
[Livraria Letra Livre]



segunda-feira, 16 de maio de 2016

'Os limites do controlo' (6)




[Jim Jarmusch, Os limites do controlo, 2009]



 "[...]

Existe-se na arte. Existe-se com a obra de arte. Cada um a seu modo; e segundo o ritmo do mundo que para a obra de arte saberá transportar. Pertence-lhe uma decisão de sentidos que se joga no momento exacto em que "aparece" e em que, com ela, se estabelece confronto. De um modo mais próximo: avançamos para o "objecto" de arte e dele só "tiramos", como resultado momentaneamente final, aquilo que lhe atribuímos, o que nele vimos e o que sobre ele pensámos. Quase sempre, senão sempre, o que para essa obra canalizámos de desdobramento de nós próprios - seus visitantes -, em grau de conhecimento (e também de ignorância) e de uma escala muito ampla de sensibilidade.

[...]"


 João Miguel Fernandes Jorge, "Canovaccio", Telhado de Vidro n.º 3,
Lisboa: Averno, Novembro de 2004



[Antoni Tapiès, Gran Sábana, 1968]

quarta-feira, 11 de maio de 2016


[....]

O teu carro era veloz, tornava pequena
e sórdida a Vinte e Quatro de Julho.
Demasiado veloz, o teu carro, a notícia 
sem rasura que chegou de noite
ao silêncio dos corações disponíveis. 

Não faz mal. São coisas que acontecem
a "esses gajos da noite". Pois, sabemos muito
bem: a morte, essa certeza improvável. 
Bebemos, claro, e fingimos que o nome
dos mortos se apaga na euforia
baça com que os dias se sucedem.
Também temos, por enquanto, uma razão
precária e urgente para fingirmos e ficarmos.
O que é muito humano - e um pouco desprezível. 

Só nunca saberei o que me querias dizer
sobre Blanchot, l'entretien (in)fini. Não esperei
que regressasses do carro, com o livro anotado,
e o último copo parece-me agora 
uma despedida incompleta, um rasto de cinza
que tinge de mágoa o balcão a que me encosto. 

Deus, Miguel, é esse estafermo iletrado
a quem nunca dedicaste um verso. Fizeste bem.




Manuel de Freitas
in Sunny Bar, com sel. de Rui Pires Cabral, posfácio de Silvina Rodrigues Lopes, 
capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos, 
Lisboa, Alambique, 2015

'A poesia está na rua'






[Fotografias de Miguel de Carvalho]

sexta-feira, 15 de abril de 2016

BALLADEN OM JENNY LIND

E é de novo sexta-feira, na mesma cidade.
As sirenes respondem pontualmente
aos corpos e bicicletas que se perdem
noite dentro. Nada que possa incomodar
o sono altivo dos mendigos da Stroget,
enrolados em mantas e garrafas já sem cor.

Decidimos tomar o último copo
no café Monten. Ao balcão, os homens
dos barcos falavam de todos os países
que viram ou não viram, sob nuvens de fumo
que escondiam mal um inglês de circunstância.

Na parede junto à nossa mesa (recorte
da época) Jenny Lind morria - e eu
ficava a saber, em sueco, que "Rökning
dödar", o que não parecia incomodar
nenhum dos presentes. No Nyhavn,
porém, anoitecia muito depressa. Teremos
de esperar pela neve, agora que passou a chuva.


Manuel de Freitas, Brynt Kobolt,
Lisboa: Averno, 2008




[ID, Santarém, 2013]


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Aniversário *


2005, GUSTAV LEONHARDT


Às vezes, por breves instantes,
a beleza habita sobre a terra,
tão urgente e impronunciável
como o rosto em trompe l’oeil
na abóbada da igreja de São Roque.

Com isto, estarei talvez a fazer
a mesma triste figura da rapariga espanhola
que ao meu lado rabiscava poemas
dialécticos – «Argumentos» e Contra-
Argumentos» velozmente incinerados
pela fundamentação física do génio.
Nós, poetas, só escrevemos disparates.

A beleza, dizia eu. Mas os meus pés,
o seu indiscutível peso sobre a terra,
coincidiam com o mármore da sepultura
número 44 (dois terços de paixão, outro de pó).

E aquele homem ajudava-nos a morrer
melhor.


Manuel de Freitas, Jukebox 1 & 2,
Lisboa, Teatro de Vila Real, 2009


* Gustav Leonhardt, 30/05/1928 - 16/01/2012