Para a Céu
A minha mãe não, nunca teve,
e o meu pai tem desde que me lembro
um talento inato para contornar a questão.
Era um medo simples e espontâneo,
o da minha avó. Receava
não acabar o bordado infinito
e o alheamento de tudo,
com a vaga excepção do afecto.
Queria apenas encontrar a manhã,
o pequeno missal junto à cabeceira
- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».
Arrependi-me, tantos anos depois,
de julgar que a vida se podia - querendo
ou não querendo - deitar fora.
Ainda aqui estou, vivo e descontente.
Não esqueço a antiga criada (foi mais
do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me
num sorriso se eu, no fundo, desejava
a morte que a avó não queria desejar.
E poluo essas memórias, talvez
por saber que não voltarei a atravessar
com ela a rua onde mais vezes caiu,
onde era senhora distante de um mundo
acabado, vagamente aristocrático
e, por sorte, ainda sem muito trânsito.
Ninguém, mesmo que queira,
quer morrer. E, do mais, ficam-nos
vislumbres, pormenores, anotações
cujo sentido descobrimos demasiado tarde.
Não sei se a cultura ajuda. Preferia
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra de pinheiros.
Era isso.
Manuel de Freitas
in Sunny Bar, com org. de Rui Pires Cabral, posfácio de Silvina Rodrigues Lopes, capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos, Lisboa, Alambique, 2015
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